segunda-feira, 17 de abril de 2017

Post mortem

Um estado, uma cidade, uma briga
O orgulho, o desprezo, a ferida

afastam,

Mas nada dói mais na vida
Que uma morte de distância.

Remorso, culpa e ânsia
Com o tempo esqueço seu rosto,
Sua voz, e
O odor
de sua fragrância.

quinta-feira, 30 de março de 2017

Conjecturas sobre uma mulher solitária

Aos 42 minutos do segundo tempo, todos os olhares se voltam às proximidades da grande área do time visitante. Quase todos, em verdade. Na era do futebol moderno e dos "smartphones", muitos torcedores divagam, indiferentes à bola que pulula em pés, cabeças e luvas de goleiro. Embora distraída, não mirava a tela de um telefone portátil, engordurando sua tela com toques frenéticos. Seus olhos, cansados, fitavam a área reservada à maior torcida organizada do clube da casa. Alguém poderia pensar que ela estaria prestando atenção à cobrança de falta que se organizava, não estivesse o tiro livre acontecendo do outro lado do gramado. 

Gol. A euforia da torcida local parece incompatível com o real significado da vitória que se avizinha - o clube se encontra no meio da tabela, longe de ser campeão, distante de se classificar para a Libertadores, mas também imune a um rebaixamento. Gol é gol, entretanto. Desconhecidos se cumprimentam e abraçam, como se responsáveis fossem pelo tento anotado. Ela esboça um sorriso, volta a observar seus arredores com uma curiosidade renovada.

Tão rápido quanto a bola retorna ao meio de campo, o seu olhar volta para o setor da torcida organizada. Poucos minutos depois levantaria, antes do fim da partida, e iria embora. Salvo por alguns torcedores assíduos, vizinhos de cadeira, ninguém nota a presença, agora transmutada em ausência, da senhora de olhar cansado. No jogo seguinte repetiria seu ritual, tal qual fizera em todos os outros jogos disputados naquele ano na Arena da Baixada: noventa e poucos minutos de vigília silenciosa e solitária. 

Rituais de luto são peculiares. De retiros até votos de silêncio, são vários os meios de suportar uma das dores mais insuportáveis de todas. Para ela, usar preto era um dos meios de enlutar-se. Vermelho e preto, melhor dizendo. Desde que seu filho, fanático, morrera em um acidente de trânsito, passou a frequentar o estádio de maneira quase religiosa - tal qual seu rebento costumava fazer. Antes indiferente ao futebol, associou-se ao clube e escolheu para si uma cadeira de onde poderia enxergar de cima a baixo a torcida organizada que para seu filho era uma outra família.

Já se passara mais de um ano. O novo hábito não a fez gostar mais de futebol. Difícil, aliás, posto que o Clube Atlético Paranaense não tem conquistado grandes feitos nos gramados. Não sabia exatamente o motivo, mas sentia-se em paz ao olhar, por noventa e tantos minutos, para a torcida organizada que se amontoava próximo à curva da Getúlio Vargas com a Buenos Aires. Por que será que ele gostava tanto disso? Buscava entender seu filho, suas paixões. Olhava para os seus irmãos e irmãs que, juntos, cantavam e gritavam e pulavam sem parar. Era como conhecer parentes distantes, muito embora só os admirasse de longe, vendo-os pequeninos, em silêncio. Era como conhecer seu filho, mesmo que não através de sua voz, escrita ou olhar. No fundo, sonhava um dia revê-lo, em meio a bandeirões e tambores, sorridente. 

sexta-feira, 24 de abril de 2015

DO SISTEMA PENAL

Apenas
há penas
Que pena.
(métrica medida consoante - e vogal - o art. 59 do Código Penal)

Preventiva:
Inventiva,
Punitiva.

Indefiro.
Retiro.
Prefiro
Um tiro

segunda-feira, 14 de abril de 2014

R. TIBAGI

Gosto
Quando estou parado,
Esperando para atravessar a rua

De ver meu reflexo
Espelhado
No vidro engordurado da janela do ônibus

Que passa rápido
Veloz
Qual uma flecha

Não vejo olhos, boca, nariz
Somente um risco de mim mesmo
Somente o necessário

Vejo-me por um segundo
Breve, fugaz
Suficiente pra que eu saiba como sou

Vejo-me assim, sem vaidade
Borrado
Numa janela de um ônibus que passa

sexta-feira, 26 de abril de 2013

POEMA À SUICIDA DESCONHECIDA

13º andar.
Não hesita.
Já havia avisado:
- Vou pular.
Pulou.
"Que bom que foi pra dentro e não pra fora",
diz o observador defronte ao prédio oco.
As duas ambulâncias chegaram tarde.
Tarde quanto?
Uma vida.
Tarde demais pra quem tem pressa de ir embora.
Mais rápido que este poema
é que se chega ao chão.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

paciência
vou escrever
que é pra dor passar

letra
palavra
substantivo, verbo, adjetivo

passo a passo
e passar bem
é passado

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

TEMPO

Lá vai o dia.
Adia? Não digo, não diria.
Não cabe no agora
O que se queria.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

AMARELA

Amarela!
Assim quiseste, coração canhestro.
Monocromático: amarela, e só.

Matiz único nessa aquarela,
Atravesso a madrugada,
Noite acesa, a amarela.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Lima

      Lima é filha de uma traição. E esta traição persiste, pulsando, em todas as esquinas, prédios e casas assentadas naquele que já fora o território sagrado no vale do rio Rimaq. Como se Atahualpa remoesse dia após dia a desonradez de Pizarro, como se seu sangue tingisse de vergonha e recusa todo o orgulho dos palácios coloniais e encardisse as grandes praças republicanas com sua repulsa.
      Desde então, opulência digladia com sobrevivência nas calles limeñas. Os edifícios do centro histórico desnudam toda a sua riqueza aos passantes, transparecendo seus detalhes, intrincados, mais explícitos que o corpo de uma prostituta que aguarda o próximo cliente em alguma esquina da Calle Washington, enquanto aos seus pés passam as hordas de corpos pardos e cansados a se arrastar com sacolas, mercadorias, crianças e preocupações.
      Dos breves dois dias passados em Lima, a imagem que guardarei não é a da grande Av. Larco, em Miraflores, ou da estátua imensa de San Martín em seu cavalo, tampouco do Palacio de Gobierno. Impressionante, em verdade, fora o menino sentado, solitário, frente à Basílica Menor e Convento de São Pedro, nos únicos metros quadrados de calçada cuja densidade demográfica é suportável, com as mãos estendidas e o rosto entre as pernas magras. Soerguendo aos passantes seus olhos branquíssimos, mergulhados em em meio ao rosto queimado, retorcido, deformado, que estampa as chagas de diversos estigmas, de sentenças contra as quais não há apelação. Fora condenado de pronto, ao nascer, por ser índio e pobre. Traído pelo poder e renegado em nome da riqueza de outros. Assim como Atahualpa.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Arequipa - 2

      Chama-se Roy. “Esta é a minha segunda casa”, diz ele, e, como bom anfitrião, guia seus visitantes pelos corredores estreitos e rochosos do El Misti, “O Senhor”, vulcão símbolo de Arequipa, nevado e triangular em seu cume de 5.823 metros de altitude. Na base do vulcão, a duas horas de escalada e onde queda o acampamento, Roy fita o horizonte nebuloso enquanto conversa com um colega, guia de outra equipe. “Existem vidas piores que a nossa”, sussurra. Complementa: “todos existimos, mas nem todos vivemos”. Perante a réplica do outro guia, diz: “Vê esta garrafa de água? Ela só existe”. Chuta-a para longe.
      Roy promete nos acordar à meia-noite, para que iniciemos a segunda (e mais difícil) parte da escalada. Já é quase noite; o frio repele a todos para suas barracas. Mas Roy permanece a mirar o horizonte. Arequipa, enorme, com seus 1.5 milhões de habitantes, lentamente surge em contraste ao céu noturno escuro. Roy observa, melancólico, com os braços cruzados em suas costas, enquanto seu rádio toca uma salsa qualquer, a paisagem urbana. Na solidão absoluta, no silêncio maciço da montanha, Roy deve perguntar a si mesmo: “E estas pessoas? Vivem, ou apenas existem?”.

Arequipa - 1

      Chari tem apenas cinco anos de idade. Vive com a família no vale do Cañón del Colca, num resort turístico ironicamente apelidado de Oásis. Chari e sua família não são privilegiados, tampouco milionários que podem se dar ao luxo de viver em um complexo turístico de tamanha beleza. Chari é quéchua, e sua família trabalha no resort, servindo aos visitantes, transformando seu esforço no prazer alheio. 
      É provável que Chari siga o mesmo destino de suas primas, e torne-se guia, ou funcionária do Oásis. Tem cinco anos, mas ainda não frequenta a escola; o isolamento é enorme, e andar a esmo pelos desfiladeiros do Cañón del Colca não é tarefa fácil. Apesar disso, Chari não parece se importar com o futuro (assim como qualquer criança de cinco anos de idade). Pede-me que a gire no ar, segurando-a pelos bracinhos, ou que brinque de arremessa-la para cima. Canso-me após cinco ou seis sessões, mas ela insiste. Segura meus dedos com suas mãozinhas, simulando um cadeado, e larga seu corpo no chão, molenga.
      Quando finalmente a convenço de que estou muito cansado para continuar, Chari me entrega uma caneta e uma folha rasgada de caderno. Pede-me: “escreva um bilhete para Maribel”. Maribel, explica-me, é sua prima e guia turística do Cañón. Pergunto-a: o que quer que eu escreva? Sussurrando, Chari me diz: “peça que me traga um osso, um osso animal”. Diante de tal singelo pedido, sorrio. Arrancaria um dedo meu para que este desejo fosse realizado.

Potosí - 1

      Vamos a Cerro Rico. Seis argentinos, uma italiana e cinco brasileiros; este é o grupo que fará o mórbido tour das Minas. O micro-ônibus estaciona em frente à agência de turismo, e, uma vez carregado, percorre o centro do Potosí até a região periférica da cidade, onde estão concentrados os mercados dos mineiros. Folhas de coca, refrigerantes e cilindros de dinamite são os produtos típicos; qualquer um pode comprá-los. Aos turistas, entretanto, é uma obrigação: para descender às vísceras da montanha, devem levar regalos aos que nela trabalham.
      É o que diz o motorista da empresa de turismo. O senhor calvo, de parcas madeixas parcialmente grisalhas e um tanto gordo, nos conta, com razão, que esta espécie de pedágio é uma compensação pelos transtornos que o turismo mórbido produz aos já fadigados mineiros. Não parece interessado em conversar sobre o tema. Afinal, em alguns dias, o Flamengo virá a Potosí. “Ronaldiño, muy bueno”. Pergunto-lhe sobre o número atual de trabalhadores em Cerro Rico; aproximadamente vinte mil, me responde. Em face a meu olhar incrédulo, complementa: há gente de seis a quarenta anos de idade. Gostaria de dizer que em Cerro Rico trabalham apenas homens, mas uma criança de seis anos de idade ainda é, apesar de tudo, uma criança.
Fora um ex-mineiro. Conta-me que não é possível trabalhar por mais de vinte anos em Cerro Rico. Os poucos que tentam alongar esta média acabam mortos ou gravemente sequelados. Os que desistem da mineração acabam condenados a sub-empregos, à prestação de serviços ou até mesmo à imigração. “Por eso soy conductor”.
      Seu tom, de desinteressado, passa a reflexivo. Seu pai fora mineiro. Morreu aos quarenta e cinco anos de idade, após duas décadas de mineração. Quase seguira o mesmo destino; hoje sobrevive como motorista, chauffer, de uma empresa turística. Sobrevive transportando visitantes ao decadente Cerro Rico, algoz de centenas de milhares de homens, de trabalhadores, de índios, mestiços, crianças e adultos; ganha a vida dirigindo pessoas ao túmulo de seu pai. Pois em Potosí, como em quase toda a Bolívia, ter uma vida digna é privilégio mais raro que a prata. Por eso soy conductor

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

monoglota

seu discurso,
redoma gigantesca
de solidez opaca

não há cor definida
tampouco forma constante.
apenas existe, estranha e fria

dê-me licença
de sua fala
que não consigo respirar

domingo, 4 de setembro de 2011

elas


água gelada na mão calejada
de alguma senhora, que bate roupas
num tanque de algum barraco à beira de estrada

suam os vincos de seu rosto,
fendas alinhadas no couro
da pele maturada em vento e sol

não há coisa mais bela, e mais triste
que a senhora que bate roupas,
silente

sentenciada há tempos
a servir, trabalhar
tragando a dor, masculina.

não contam as más(culas) línguas
que a senhorinha enrugada
bate roupa com a força
de milhões de legiões.

força histórica que absolverá as próximas
de todo o pecado inicial,
da condenação original
por ser mulher

e então não haverá, nesse mundo liberto
nenhuma senhorinha carregando
o mundo nas costas.

não haverá mulher alguma
escondida da história.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

melancólico

Lanço-me
violentamente
em descenço


Vejo crescer o chão,
a última negativa,
intransponível


Sou tão leve?
Minha face chocada
encontra o mundo e não faz som

segunda-feira, 18 de julho de 2011

amor transviado

 

abrace-me e fale de amor

encoste seus lábios em meu ouvido

sussurre palavras ocas e brancas

 

pálidas, quase moribundas,

brinquemos como teria sido

da primeira vez.

 

mas fale rápido!

estou ficando surdo

e você, muda

 

muda demais.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

escrito relâmpago I

enfrentemos as feras
que com ferro ferem
furiosamente!

ferem aquele que forja o ferro
com força e fôlego,
freneticamente

ferrados,
feridos,
famintos,
em frangalhos.

mas sempre com fé
de que aquele,
que com ferro fere,
com ferro seja ferido

domingo, 10 de julho de 2011

chega

a vermelhidão espirra
escarrada
sai do nariz, pela boca.

cedo ou tarde
há de acabar.

o aço frio reluz
polido
encerrando os pulsos, marcando a pele

cedo ou tarde
há de mudar.

bocas risonhas profanam
a luta diária,
sentados refestelados, escondidos em ricas alcovas

cedo ou tarde
há de começar.

Há de começar,
nas ruas e vielas
no grito ensandecido do indivíduo esquálido
faminto
sedento
com fome e sede do troco
que ainda há de ser cobrado

cedo ou tarde
há que se cobrar.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

analfabeto

sinto em mim os riscos
traços deformados
sinuosos e desconexos
feitos à (muita) pena

desvairado
rasgo em mim mesmo
mil signos
sem saber o que dizem

alucinado
me risco todo
tentando aprender
o que a dor grita

talvez ela nada queira
e nada ensine.
talvez só não queira ser esquecida
como eu.

espero dentre os traços
aquele que entenderei.
espero pacientemente
o ponto final .

sexta-feira, 3 de junho de 2011

não mais

meu ventre
doente
ressente;
revira,
revolve,
remói.

mas quão curioso
é o doer enganoso
do ventre nervoso!

já que só há ferida,
rubra herança alarida
em carne esculpida

nas minhas costas apunhaladas.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Citalopram

Sur to
Ajoelh ando-me
Gri to até s
a
n
g
r
ar.

Precisofugirprecisofugirpreciso
fugir.
de mim

quarta-feira, 4 de maio de 2011

autoelegia

urgente ânsia
por deixar de ser
quem não é nada

não mais querer
não mais precisar
não mais.
não.

apenas fechar os olhos,

terça-feira, 3 de maio de 2011