quinta-feira, 30 de março de 2017

Conjecturas sobre uma mulher solitária

Aos 42 minutos do segundo tempo, todos os olhares se voltam às proximidades da grande área do time visitante. Quase todos, em verdade. Na era do futebol moderno e dos "smartphones", muitos torcedores divagam, indiferentes à bola que pulula em pés, cabeças e luvas de goleiro. Embora distraída, não mirava a tela de um telefone portátil, engordurando sua tela com toques frenéticos. Seus olhos, cansados, fitavam a área reservada à maior torcida organizada do clube da casa. Alguém poderia pensar que ela estaria prestando atenção à cobrança de falta que se organizava, não estivesse o tiro livre acontecendo do outro lado do gramado. 

Gol. A euforia da torcida local parece incompatível com o real significado da vitória que se avizinha - o clube se encontra no meio da tabela, longe de ser campeão, distante de se classificar para a Libertadores, mas também imune a um rebaixamento. Gol é gol, entretanto. Desconhecidos se cumprimentam e abraçam, como se responsáveis fossem pelo tento anotado. Ela esboça um sorriso, volta a observar seus arredores com uma curiosidade renovada.

Tão rápido quanto a bola retorna ao meio de campo, o seu olhar volta para o setor da torcida organizada. Poucos minutos depois levantaria, antes do fim da partida, e iria embora. Salvo por alguns torcedores assíduos, vizinhos de cadeira, ninguém nota a presença, agora transmutada em ausência, da senhora de olhar cansado. No jogo seguinte repetiria seu ritual, tal qual fizera em todos os outros jogos disputados naquele ano na Arena da Baixada: noventa e poucos minutos de vigília silenciosa e solitária. 

Rituais de luto são peculiares. De retiros até votos de silêncio, são vários os meios de suportar uma das dores mais insuportáveis de todas. Para ela, usar preto era um dos meios de enlutar-se. Vermelho e preto, melhor dizendo. Desde que seu filho, fanático, morrera em um acidente de trânsito, passou a frequentar o estádio de maneira quase religiosa - tal qual seu rebento costumava fazer. Antes indiferente ao futebol, associou-se ao clube e escolheu para si uma cadeira de onde poderia enxergar de cima a baixo a torcida organizada que para seu filho era uma outra família.

Já se passara mais de um ano. O novo hábito não a fez gostar mais de futebol. Difícil, aliás, posto que o Clube Atlético Paranaense não tem conquistado grandes feitos nos gramados. Não sabia exatamente o motivo, mas sentia-se em paz ao olhar, por noventa e tantos minutos, para a torcida organizada que se amontoava próximo à curva da Getúlio Vargas com a Buenos Aires. Por que será que ele gostava tanto disso? Buscava entender seu filho, suas paixões. Olhava para os seus irmãos e irmãs que, juntos, cantavam e gritavam e pulavam sem parar. Era como conhecer parentes distantes, muito embora só os admirasse de longe, vendo-os pequeninos, em silêncio. Era como conhecer seu filho, mesmo que não através de sua voz, escrita ou olhar. No fundo, sonhava um dia revê-lo, em meio a bandeirões e tambores, sorridente. 

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