sábado, 4 de fevereiro de 2012

Lima

      Lima é filha de uma traição. E esta traição persiste, pulsando, em todas as esquinas, prédios e casas assentadas naquele que já fora o território sagrado no vale do rio Rimaq. Como se Atahualpa remoesse dia após dia a desonradez de Pizarro, como se seu sangue tingisse de vergonha e recusa todo o orgulho dos palácios coloniais e encardisse as grandes praças republicanas com sua repulsa.
      Desde então, opulência digladia com sobrevivência nas calles limeñas. Os edifícios do centro histórico desnudam toda a sua riqueza aos passantes, transparecendo seus detalhes, intrincados, mais explícitos que o corpo de uma prostituta que aguarda o próximo cliente em alguma esquina da Calle Washington, enquanto aos seus pés passam as hordas de corpos pardos e cansados a se arrastar com sacolas, mercadorias, crianças e preocupações.
      Dos breves dois dias passados em Lima, a imagem que guardarei não é a da grande Av. Larco, em Miraflores, ou da estátua imensa de San Martín em seu cavalo, tampouco do Palacio de Gobierno. Impressionante, em verdade, fora o menino sentado, solitário, frente à Basílica Menor e Convento de São Pedro, nos únicos metros quadrados de calçada cuja densidade demográfica é suportável, com as mãos estendidas e o rosto entre as pernas magras. Soerguendo aos passantes seus olhos branquíssimos, mergulhados em em meio ao rosto queimado, retorcido, deformado, que estampa as chagas de diversos estigmas, de sentenças contra as quais não há apelação. Fora condenado de pronto, ao nascer, por ser índio e pobre. Traído pelo poder e renegado em nome da riqueza de outros. Assim como Atahualpa.

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